domingo, 28 de agosto de 2011

AFormação

No final do século passado, o matemático francês Henri Poicaré referiu-se à sociologia como ciência de muitos métodos e poucos resultados. Ao que tudo indica, atualmente poucos duvidam dos resultados alcançados pela sociologia. A sua realidade é atestada pelas inúmeras pesquisas dos sociólogos, pela sua presença nas universidades e empresas e nos organismos estatais. Ao lado desta crescente presença da sociologia no nosso dia-a-dia, continua porém chamando a atenção de todos os que se interessam por ela os freqüentes e acirrados debates travados em seu interior sobre o seu objeto de estudo e seus métodos de investigação.

A falta de um entendimento comum entre os sociólogos sobre a sua ciência possui, em boa medida, uma relação com a formação de uma sociedade dividida pelos antagonismos de classe. A existência de interesses opostos na sociedade capitalista penetrou e invadiu a formação da sociologia. Este contexto históri-co influenciou enormemente suas visões sobre como deveria ser analisada a soci-edade, o que refletiu também no conteúdo político de seus trabalhos. Este anta-gonismo deu origem ao aparecimento de diferentes tradições sociológicas ou dis-tintas sociologias como afirmam alguns sociólogos.

Não podemos esquecer que a sociologia surgiu num momento de gran-de expansão do capitalismo e por isto mesmo alguns sociólogos otimistas assumi-ram, diante da sociedade capitalista nascente, que os interesses e os valores da classe dominante eram representativos do conjunto da sociedade e que os confli-tos entre as classes sociais eram passageiros.

Os conservadores chamados de “profetas do passado” construíram suas obras contra a herança dos filósofos iluministas. Não eram intelectuais que justifi-cavam a sociedade por suas realizações políticas ou econômicas. Ao contrário, a inspiração do pensamento conservador era a sociedade feudal, com sua estabili-dade e acentuada hierarquia social. Não se interessavam em defender uma sociedade moldada nos princípios defendidos pelos iluministas nem um capitalismo que se transformava mostrando sua faceta industrial e financeira. O fascínio que as sociedades da Idade Média exercia sobre estes pensadores conferiu-lhes e às su-as obras um forte sabor medieval. Por interesse direto, alguns deles eram defenso-res ferrenhos das instituições religiosas, monárquicas e aristocráticas em franco processo de desmantelamento.

As idéias dos conservadores eram um ponto de referência para os pioneiros da sociologia, interessados na preservação da nova ordem econômica e política que estava sendo implantada. Adaptando, inclusive, algumas concepções dos “profetas do passado” às novas circunstâncias históricas, pela impossibilidade total de retorno ao passado.

É entre os autores positivistas, como Saint-Simon, Auguste Comte e E-mile Durkheim, que as idéias dos conservadores exerceriam uma grande influên-cia. É comum encontrarmos a inclusão de Saint-Simon (1760-1825) entre os pri-meiros pensadores socialistas. Foi considerado o “mais eloqüente dos profetas da burguesia”, um grande entusiasta da sociedade industrial. Todavia, entendia que o problema da restauração da ordem devia ser enfrentado, porque a sociedade francesa pós-revolucionária parecia-lhe “perturbada” pois nela reinava um clima de “desordem” e de “anarquia”.

Saint-Simon acreditava que a nova época era a do industrialismo, que trazia consigo a possibilidade de satisfazer todas as necessidades humanas e constituía a única fonte de riqueza e prosperidade. Percebeu que no avanço que estava ocorrendo no conhecimento científico havia uma grande lacuna, nesta área do saber, qual seja, a inexistência da ciência da sociedade. Admitia, mesmo tendo uma visão otimista da sociedade industrial, a existência de conflitos entre os possuidores e os não possuidores.

Várias das obras de Saint-Simon seriam retomadas por Auguste Comte (1798-1857) seu secretário particular, pensador menos original, embora mais sistemático que Saint-Simon, a quem deve suas principais idéias. A motivação da obra de Comite repousa no estado de “anarquia” e de “desordem” de sua época histórica. Segundo ele as sociedades européias encontravam-se em um verdadeiro estado de caos social. Entendia que se as idéias religiosas não teriam mais forças para reorganizarem a sociedade, muito menos as idéias dos iluministas. Era extremamente impiedoso no ataque a esses pensadores, a quem chamava de “dou-tores em guilhotina”, vendo em suas idéias o “veneno da desintegração social”. Para ele, para haver coesão e equilíbrio na sociedade, seria necessário restabelecer a ordem nas idéias e nos conhecimentos, criando um conjunto de crenças co-muns a todos os homens.

Comite considerava como um dos pontos altos de sua sociologia a reconciliação entre a “ordem” e o “progresso”, pregando a necessidade mútua desses dois elementos para a nova sociedade.

Também para Durkheim (1858-1917) a questão da ordem social seria uma preocupação constante. De forma sistemática, ocupou-se em estabelecer o objeto de estudo da sociologia assim como indicar o seu método de investigação. Foi através dele que a sociologia penetrou a Universidade, conferindo a esta disciplina o reconhecimento acadêmico. Sua obra foi elaborada em época de crises econômicas constantes, quando o desemprego e a miséria provocava o acirramento das lutas de classe, com os operários utilizando a greve como instrumento de luta e fundando seus sindicatos.

Vivendo nesta época em que as teorias socialistas ganhavam terreno, Durkheim não poderia ignorá-las, tanto é que em certo sentido, suas idéias consti-tuíam a tentativa de fornecer uma resposta às formulações socialistas. Discordava das teorias socialistas mormente quanto à ênfase atribuída aos fatos econômicos para diagnosticar a crise das sociedades européias. Acreditava que a origem dos problemas não era de natureza econômica, mas originados na fragilidade da moral em orientar adequadamente o comportamento dos indivíduos.

Preocupado em estabelecer um objeto de estudo e um método para a sociologia, Durkheim, dedicou-se a esta questão, salientando que nenhuma ciência poderia constituir-se sem uma área própria de investigação. A sociologia deveria ocupar-se com os fatos sociais que se apresentavam aos indivíduos como exterio-res e coercitivos. Isto quer dizer que o indivíduo quando nasce já encontra a socie-dade formada criada pelas gerações passadas, cuja organização deverá ser transmitida às gerações futuras através da educação.

O seu pensamento marcou decisivamente e sociologia contemporânea, principalmente as tendências que têm-se preocupado com as questões da manutenção da ordem social. A sua influência fora do meio acadêmico francês começou por volta de 1930, quando, na Inglaterra, dois antropólogos, Malinowski e Radcliffe-Brown, armaram a partir de seus trabalhos os alicerces do método de investigação funcionalista (busca de explicação das instituições sociais e culturais em termos da contribuição que estas fornecem para a manutenção da estrutura social). Nos Estados Unidos, a partir daquela data, as suas idéias começaram a ganhar terreno no meio universitário, exercendo grande fascínio em inúmeros pesquisadores. No entanto, foram dois sociólogos americanos Mertom e Parsons, em boa medida, os responsáveis pelo desenvolvimento do funcionalismo moderno e pela integração da contribuição de Durkheim ao pensamento sociológico contemporâneo, destacando a sua contribuição ao progresso teórico desta disciplina.

A formação e o desenvolvimento do conhecimento sociológico crítico e negador da sociedade capitalista, sem dúvida liga-se à tradição do pensamento socialista, que encontra-se em Marx (1818-1883) e Engels (1820-1903) a sua elaboração mais expressiva. Estes pensadores não estavam preocupados em fundar a sociologia como disciplina específica. A rigor não encontramos neles a intenção de estabelecer fronteiras rígidas entre os diferentes campos do saber, tão ao gosto dos “especialistas” de nossos dias. Eles, em suas obras, interligavam disciplinas como antropologia, ciência política, economia, procurando oferecer uma explicação da sociedade como um todo, colocando em evidência as suas dimensões globais.

Seus trabalhos não foram elaborados nos bancos das universidades, mas freqüentemente, no calor das lutas políticas.

A formação teórica do socialismo marxista constitui uma complexa operação intelectual, na qual são assimiladas de maneira crítica as três principais correntes do pensamento europeu do século passado, tais como, o socialismo, a dialética e a economia política. O socialismo pré-marxista, também denominado “socialismo utópico”, constituía uma clara reação à nova realidade implantada pelo capitalismo, principalmente quanto às suas relações de exploração. Marx e Inglês, ao tomarem contato com a literatura socialista da época, assinalaram as brilhantes idéias de seus antecessores sem deixarem de elaborar algumas críticas a este socialismo, a fim de dar-lhe maior consistência teórica e efetividade prática. Assinalavam que as lacunas existentes neste tipo de socialismo possuíam uma relação com o estágio de desenvolvimento do capitalismo da época, uma vez que as contradições entre burguesia e proletariado não se encontravam ainda plenamente amadurecidas.

Atuavam os “utópicos” como representantes dos interesses da humanidade, não reconhecendo em nenhuma classe social o instrumento para a concretização de suas idéias.

A filosofia alemã da época de Marx encontrara em Hegel uma de suas mais expressivas figuras. Como se sabe, a dialética ocupava posição de destaque em seu sistema filosófico. A tomarem contato com a dialética hequeliana, eles ressaltaram o caráter revolucionário, uma vez que o método de análise de Hegel sugeria que tudo o que existia, devido às suas contradições, tendia a extinguir-se. A crítica que eles faziam à dialética hequeliana se dirigia ao seu caráter idealista. Assim procuraram “corrigi-la”, recorrendo ao materialismo filosófico de seu tempo.

A intenção e conferir à sociologia uma reputação científica encontram em Max Weber (1864-1920) um marco de referência. Durante toda sua vida, insistiu em estabelecer uma clara distinção entre o conhecimento científico, fruto de cuidadosa investigação, e os julgamentos de valor sobre a realidade.

A busca de uma neutralidade científica levou Weber a estabelecer uma rigorosa fronteira entre o cientista, homem do saber, das análises frias e penetrantes e o político, homem de ação e de decisão comprometido com as questões práticas da vida. Essa posição de Weber, que tantas discussões têm provocado entre os cientistas sociais, constitui, ao isolar a sociologia dos movimentos revolucionários, um dos momentos decisivos da profissionalização dessa disciplina. A idéia de uma ciência social neutra seria um argumento útil e fascinante para aqueles que viviam e iriam viver da sociologia como profissão.

A sociologia por ele desenvolvida considerava o indivíduo e a sua ação como ponto chave da investigação. Com isso, ele queria salientar que o verdadeiro ponto de partida da sociologia era a compreensão da ação dos indivíduos e não a análise das “instituições sociais” ou do “grupo social”, tão enfatizada pelo pensamento conservador.

O Desenvolvimento

Se o contexto histórico do surgimento e da formação da sociologia coincidiu com um momento de grande expansão do capitalismo, infundindo otimismo em diversos sociólogos com relação à civilização capitalista, os acontecimentos históricos que permearam o seu desenvolvimento tornaram no mínimo problemáticos as esperanças de democratização que vários sociólogos nutriam com relação ao capitalismo. O desenvolvimento desta ciência tem como pano de fundo a existência de uma burguesia que se distanciara de seu projeto de igualdade e fraternidade, e que, crescentemente, se comportava no plano político de forma menos liberal e mais conservadora, utilizando intensamente os seus aparatos repressivos e ideológicos para assegurar a sua dominação.

O aparecimento das grandes empresas, monopolizando produtos e mercados, a eclosão de guerras entre as grandes potências mundiais, a intensificação da organização política do movimento operário e a realização de revoluções socialistas em diversos países, eram realidades históricas que abalavam as crenças na perfeição da civilização capitalista.

A profunda crise em que mergulhou a civilização capitalista em nosso tempo não poderia deixar de provocar sensíveis repercussões no pensamento sociológico contemporâneo. O desmoronamento da civilização capitalista, levado a cabo pelos diversos movimentos revolucionários e pela alternativa socialista fez com que o conhecimento científico fosse submetido aos interesses da ordem estabelecida. As ciências sociais, de modo geral, passaram a ser usadas para produzir um conhecimento útil e necessário à dominação vigente.

A antropologia foi largamente utilizada para facilitar a administração de populações colonizadas; a ciência econômica e a ciência política forneceram freqüentemente seus conhecimentos para a elaboração de estratégias de expansão econômica e militar das grandes potências capitalistas.

A sociologia também, em boa medida, passou a ser empregada como técnica de manutenção das relações dominantes. As pesquisas de inúmeros sociólogos foram incorporadas à cultura e à prática das grandes empresas, do Estado moderno, dos partidos políticos, à luta cotidiana pela preservação das estruturas econômicas, políticas e culturais do capitalismo moderno. O sociólogo de nosso tempo passou a desenvolver o seu trabalho, via de regra, em complexas organizações privadas ou estatais que financiam suas atividades e estabelecem os objetivos e as finalidades da produção do conhecimento sociológico. Envolvido nas malhas e nos objetivos que sustentam suas atividades, tornou-se para ele extremamente difícil produzir um conhecimento que possua uma autonomia crítica e uma criatividade intelectual.

O desenvolvimento da sociologia na segunda metade do nosso século foi profundamente afetado pela eclosão das duas guerras mundiais. Tal fato não poderia deixar de quebrar a continuidade dos trabalhos que vinham sendo efetuados, interrompendo drasticamente o intercâmbio de conhecimentos entre as nações.

A sociologia, a partir dos anos cinqüenta, seria arrastada e envolvida na luta pela contenção da expansão do socialismo, pela neutralização dos movimentos de libertação das nações subjugadas pelas potências imperialistas e pela manutenção da independência econômica e financeira destes países em face dos centros metropolitanos.

É neste contexto que surge a melancólica figura do sociólogo profissional, que passa a desenvolver as suas atividades de correção da ordem, adotando uma atitude científica “neutra” e “objetiva”. Na verdade, a institucionalização da sociologia como profissão e do sociólogo como “um técnico”, um “profissional como outro qualquer”, foi realizada a partir da promessa e rentabilidade que os sociólogos passaram a oferecer a seus empregadores potenciais, como o Estado moderno, as grandes empresas privadas e os diversos organismos internacionais empenhados na conservação da ordem em escala mundial.

A profissionalização da sociologia, orientada para legitimar os interesses dominantes, constitui campo fértil para uma classe média intelectualizada ascender socialmente.

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